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Marcus Aranha, com seu Anayde Beiriz. Panthera dos olhos dormentes


Os tempos eram difíceis para as mulheres, na primeira metade do século XX. Isso não significa que, em nossos dias, a vida seja um mar de rosas. Mas, algumas conquistas podem ser contabilizadas de lá para cá. E Anayde Beiriz deu sua contribuição para mudar o comportamento das mulheres e o olhar da sociedade sobre elas.
Marcus Aranha, com seu Anayde Beiriz. Panthera dos olhos dormentes (João Pessoa: Manufatura, 2005), não me deixa mentir. Apaixonado pela inteligente e bela paraibana (e ele que não negue essa paixão...), fez-se acompanhar de Vanildo Brito e Lau Siqueira; pediu e recebeu ajuda de amigos (tal como registra nos agradecimentos), e preparou um livro que é um retrato de corpo inteiro da professora de Cabedelo.
Aranha muniu-se de farta documentação cedida pela família Beiriz. Publica uma galeria das personagens da época; reproduz documentos preciosos e organiza e transcreve as cartas trocadas entre Anayde Beiriz e Heriberto Paiva, entre agosto de 1924 e agosto de 1926, conservadas no diário da moça. Evitando a longa defesa de qualquer tese, Aranha, com fina sensibilidade, deixa que Anayde e Heriberto se mostrem e nos mostrem aqueles tempos.
As cartas... o principal interesse do livro. Ah! as cartas... Já disse o poeta que todas as cartas de amor são ridículas, e não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. São ridículas até quando testemunham o rompimento da relação amorosa. Mas, que gostoso e poético ridículo emana das cartas de amor... (até mesmo das de rompimento...). Triste de quem nunca as escreveu ou que não tenha oportunidade de escrevê-las.
Anayde e Heriberto falam e falam e falam de amor, de beijos, de saudades. Sonham e sonham e sonham. Anayde, na Parahyba, apaixonada, romântica, fala de casinha, de flores, de filhos. Ele, no Rio de Janeiro, não faz por menos e até escolheu o nome dos filhos desejados: Ruth e Fernando. Trocam cartões e fotos e contam o quanto beijam as fotos. A linguagem não perde a elegância e a correção. O estudante de medicina pede fios de cabelo. A escritora e colaboradora de periódicos manda os fios de cabelo e explica que são curtos, pois usa o cabelo à la garçonne. Arrufam-se por qualquer frase ou expressão não bem interpretada e pedem desculpas e perdoam-se sempre – afinal, resistir, quem há-de?
Os enamorados mantêm-se discretos e pouco falam de intimidades. Encontramos, então, uma Anayde que, quando se confessa ardente, apaixonada, vibrante..., explica, imediatamente: Temi muitas vezes que os meus olhos te revelassem o que eu queria que tu desconhecesses e só agora, (e isto porque está longe e não me podes ver tão cedo), eu tenho ânimo de revelar-me aos teus olhos, tal qual sou. (1) Mas, Anayde estava à frente de seu tempo. Assim, na mesma carta, mostra-se: Não me creias uma mulher romântica, piedosa, dessas que amam pacífica e sinceramente, mas sem intensidade e sem ardor, essas mulheres que sabem ser esposas, sabem ser mães, mas não sabem ser amantes. Todavia, eis que o pudor fala mais alto, e ela escreve: Sei que não é bonito isso que te estou a dizer, mas a confiança que tenho em ti leva-me a falar-te deste modo./ Perdoa-me, meu Amor, se te magoei com a minha franqueza; se impelida pelo meu afeto, estimulada pela minha paixão, estendi-me demais. (p. 71-72).
Ele, por sua vez, em um dos raros momentos de confissão explícita do desejo, escreve, depois de uma cópula epistolar: como me alegraria ao ver-te perder as forças lentamente dominada por mim, enquanto os teus lábios desejosos murmuram o nome de Henry!...(2) Porém, retornando às regras ditadas pelo pudor, o apaixonado ressalva: Amor: perdoa-me estas palavras insensatas, que não são senão o resumo de tudo o que sinto, de tudo o que o meu cérebro, embriagado pela idéia do amor, sonha. (p. 81).
Só mesmo a ditadura dos comportamentos de época e a delicadeza diante da amada para fazer um estudante de medicina se esquecer da anatomia e da fisiologia... e assentar toda responsabilidade no cérebro.
Não pense o/a leitor/a que vai ler cartas devassas. Aranha nos oferece a rara oportunidade de entrar na discreta intimidade de um par romântico. Moça culta, bem formada, Anayde mantém as regras do tempo. Cavalheiro, falando em casamento, em família, Heriberto jamais se aproxima do escatológico, do escandaloso.
Porém, lendo com outros olhos, o trabalho de Aranha, ao transcrever essas cartas, nos traz uma sociedade pretensamente aristocrática, rigidamente estratificada em classes, provinciana e maledicente. O leitor perceberá a capacidade de uma madrasta para instaurar o clima de suspeita, de preconceito e de intriga.
Aranha nos oferece uma bela história de amor com um final triste. As duas últimas cartas revelam o abismo entre dois universos. Anayde, ferida pela suspeita estúpida de Heriberto, escreve-lhe dando algumas explicações (verdadeiras, como daria qualquer mulher apaixonada, injustamente julgada e tentando se defender). Ele não espera resposta a sua carta de rompimento, ditada pelo ciúme, e manda a última carta a Anayde.
Caríssimo/a leitor/a, nada disso é ficção. Aranha nos entrega uma histórica narrativa epistolar de uma grande paixão, a ser reencontrada nos documentos transcritos. Havia, sim, uma sociedade metida a besta; que, se não fosse tão pedante e autoritária, Anayde seria esposa de Heriberto, e João Pessoa até poderia ter sido eleito vice-presidente da República.
Mas, Anayde, mulher livre para amar, encontrou em João Dantas aquilo que a estupidez do ciúme de Heriberto lhe negou: a possibilidade de amar e de ser amada em perfeita, completa e integral cumplicidade. Depois disso, só lhe restava a Morte.
Com certeza, Marcus Aranha, atribuir a Anayde Beiriz o epíteto de “mulher macho” é grosseiro e não traduz a personalidade dessa minha “avó” tão feminina. Contudo, revela que, para algumas pessoas, inclusive Tizuka Yamasaki, mulher com o perfil de Anayde Beiriz não passa de vadia... ou de masculinizada (como se coragem para amar e ser inteligente fossem atributos exclusivos do macho). Lamento o quanto essa mentalidade passa longe da compreensão da trágica vida de uma de minhas “antepassadas”. Anayde Beiriz foi mulher fêmea, sim, senhor – e com coragem bastante para se suicidar quando perdeu João Dantas, o último amor de sua tão curta vida.Parabéns! Marcus Aranha, por devolver à Paraíba e às mulheres brasileiras Anayde Beiriz, apaixonada, inteligente, sonhadora, romântica, amada, pudica e ferida.
Notas
1- Na transcrição, Marcus Aranha manteve a ortografia da época. Aqui, cito com atualização.2- Hery: forma carinhosa e cúmplice de tratamento usado por Anayde, para se dirigir a Heriberto.

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